Era uma vez... Assim como eram todas as vezes. Madrugada, você
deitada na cama encarando o relógio no criado mudo. Eu chutava a
porta, depois de tentar, sem sucesso, meter a chave no buraco da
fechadura. “Calma, cacete. Já vou abrir”, lá vinha você, bodejando sei lá mais o quê,
que de tão bêbado nunca lembrei.
Todas as vezes que eu me via preferir a mesa de bar a tua
companhia, lembrava de quando largara meu mundo pelas tuas vontades. Tu querias
sair do sítio. E lá fomos nós, jurando amor eterno, prometendo estudar, trabalhar,
ter filhos, casar. Não necessariamente nessa ordem.
Nossos planos de amores feitos ao lado dos pés de amora,
em cima dos jambeiros e ingazeiros, aos poucos se desfaziam no
segundo andar do nosso prédio, onde as paredes me sufocavam. A rotina também. A
cidade te tirou aquele ar de menina do campo, Soraia. Flores no cabelo, cara limpa, vestimentas singelas... Teus cachos, que eu tanto amava, você esticou. Tuas unhas agora combinavam com a boca vermelha. Até teu cheiro deixou de ser teu (e meu).
Depois de meses de bebedeira continua pra fugir
de nós, você já tinha aprendido. Com gente bêbada não se
discute. E me deixava soltar os cachorros, despejar as cobras, os lagartos,
enquanto você engolia os sapos, rãs e cururus. Engolia com maestria. Até um dia
vomita-los todos na minha cara, enquanto dizia que engolir era fácil, difícil
era digerir. E me mandou ir embora, sem saber que eu já planejava ir. Mas essa parte só veio agora porque eu comecei pelo final.
Até porque, diz o clichê, no começo tudo são flores. E nós
éramos orquídeas crescendo sobre as árvores, em busca de sol. E brincávamos de
esconde-esconde, corríamos pelo sítio, pulávamos pelados no açude, ríamos das
piabas taradas mordiscando nossas coisas. Coisas estas, que descobrimos juntos.
A cerca que separava nossas terras tinha uma pequena falha.
A falha mais certa de nossas vidas. Os dois faltosos pedaços de madeira que me
permitiram adentrar teus lados em busca de uma pipa qualquer. Enquanto você,
arengueira, ameaçava não devolver. “Eu que aparei, ela é minha”, gritava. E eu
te mandei ir atrás das tuas bonecas, costurar roupinhas e me deixar em paz, com
minhas coisas de menino.
Você dava de ombros. Dava língua. Mostrava o dedo do meio.
Tinhosa, como sempre foi, batia o pé no chão e dizia não. E eu te odiei. Odiei
por ter me feito, a partir dali, esquecer a pipa e as demais coisas de menino.
Mas antes, corri atrás de ti, até cairmos no chão, nos atracando numa briga
digna de filhotes de cães. A pipa já não tinha mais papel de seda, teus cachos
enfeitados com folhas secas e você, ofegante, pedia trégua.
Deitamos lado a lado no chão. Tomamos minutos de fôlego em
silêncio, até você quebra-lo com um riso baixo, que foi aumentando e aumentando
devagar até se transformar na melhor das gargalhadas já registradas por minha
memória auditiva. “Ta rindo de quê, em, menina velha?”. “To rindo da tua pipa,
que ta só o bagaço. Nem tu nem eu vamos poder brincar”.
Eu lembro, Soraia. Eu lembro que foi assim. Lembro até do teu primeiro
abraço demorado, quando terminei de consertar a escada da tua casa na árvore.
Três degraus soltos, doze pregos, um martelo, um erro a cada cinco marteladas e
um beijo no meu rosto a cada dedo machucado, pra aliviar a dor. Lembro que foi
ali, naquela casa, que descobri teu corpo, o cheiro da tua nuca, teus beijos,
tuas primeiras taras.
Beijos.
Jairo
Cacete Rayssa. Muito bom.
ResponderExcluirAdorei, Ray. Como sempre, me fazendo imaginar cada palavra. E me inspirando! ;)
ResponderExcluirQuase eu chorei. Que lindo!
ResponderExcluircomeçaram pelo alto da casinha na árvore e esqueceram, por vezes, de por o pé no chão. ;~
ResponderExcluirMuito bom, ray.
ResponderExcluirMuito bom, Rayssa. A poetisa amadurecendo, contando dos sentimentos, nascidos e falecidos, do primeiro amor, tocando no leitor o que quase todo(a)s viveram.
ResponderExcluirabs
Gilvan